Em entrevista, Guiñazu revela que comia tijolo na infância
O volante Guiñazu teve o melhor resultado entre todo o grupo do Vasco no teste de resistência na volta das férias.
Guiñazu descrevia seu modo de marcar e lembrava as críticas que recebia quando chegou ao Brasil. Esticou o braço e, com as duas mãos, pegou o braço do repórter e disse: “se a gente jogar ali agora, não vou te matar, mas você não vai ganhar”. Vem do sangue indígena – da energia incansável da mãe e da avó – a disposição quase sem fim de Pablo Horácio Guiñazu. Nascido na pequena cidade de General Cabrera, o argentino de 36 anos chegou a ficar com um pé fora do Vasco, mas permanece em São Januário ainda mais admirado e respeitado do que quando entrou.
Se os colorados podem dizer que idolatram eternamente Guiñazu, os vascaínos seguem pelo mesmo caminho. Quase unanimidade para os torcedores – em enquete em um dos sites mais visitados pelos vascaínos na internet, 94% aprovaram sua permanência -, o jogo elétrico, a vibração em campo e frases como “nunca é impossível virar” serviram de elo com a torcida que canta que “o Vasco é o time da virada”.
Em 21 minutos de entrevista, apertado entre o treino da manhã e o horário de almoço, Guiñazu revelou a inusitada história de que chegou a comer tijolo vermelho quando era criança – e gostou! Conta que acompanhava o pai caminhoneiro – o que o empurrou ainda mais na carreira de jogador – e lembra da má impressão que causou com seu jogo “agressivo” ao chegar no futebol brasileiro. A resistência foi quebrada aos poucos.
– Se tenho oito anos aqui e jamais machuquei alguém, alguma coisa tenho de bom – afirma o argentino.
Viciado, disciplinado e disciplinador pelo trabalho, o jogador teve o melhor resultado entre todo o grupo do Vasco no teste de resistência na volta das férias. Com o ex-companheiro Juninho aprendeu ainda mais a regrar sua alimentação e seus hábitos. Com quase 20 anos de carreira, Guiñazu correu atrás de Zidane e Ronaldo na Itália quando era garoto. E, quando ainda defendia o Inter, penou para alcançar – sem sequer conseguir derrubá-lo – Neymar. O craque do Barcelona, aliás, é um símbolo da evolução do futebol brasileiro. Hoje, “El Cholo Loco” vê os brasileiros se atirando menos para cavar faltas. Um sintoma que pode ajudar ao futebol daqui em meio às discussões sobre os 7 a 1 da Alemanha na Copa do Mundo.
– Foi um golpe duríssimo (o 7 a 1). Mas acho que pode servir e muito para pensar que também não é tudo de bom, sempre melhor (o futebol brasileiro). Claro que tem os melhores jogadores, que são bons, mas precisa ser… (faz gesto com as mãos expressando dureza) firme, dar duro, porque tem outros também que trabalham para c… – diz, expressando um palavrão bem abrasileirado, o argentino do Vasco.
Confira abaixo a entrevista completa com Guiñazu:
GloboEsporte.com: Você esteve para sair do Vasco. Como foi a conversa com o presidente Eurico Miranda?
Guiñazu: Não conhecia o presidente, tinha escutado falar muito dele. Até pela história dele no futebol. Eu tinha uma proposta concreta do Cerro Porteño, até preciso agradecer, porque tenho 36 anos e eles confiaram em mim. Eu fui disposto para sair, no sentido também que o Vasco estava diminuindo o elenco. Com uma coisa concreta, fomos lá conversar, primeiro com Paulo Angioni, depois chegou o presidente. Ele falou que queria muito que eu ficasse, que queria minha permanência. Disse que queria continuar meu serviço. Estou muito feliz, contente, ainda tinha mais seis meses de contrato, mas renovamos e vou continuar com muita alegria.
Vai encerrar a carreira no Vasco?
Vou completar quase dois anos no Vasco, dei a volta por cima e o ano passado foi complicado, difícil, duro, mas a gente conseguiu levar o time ao lugar ao qual ele pertence. Esse ano aqui, ficando nesse grupo, é a coisa mais linda que vai ter, então vamos tentar aproveitar.
A torcida, quase que de forma unânime, vibrou com sua permanência. Em um fórum na internet, 94% aprovaram que você ficaria mais tempo no Vasco…
Não sou muito de olhar internet, nem nada, mas isso é uma coisa que alimenta, que motiva. Eu fico muito agradecido, só tenho para agradecer. O torcedor do Vasco tem sido maravilhoso, espetacular o tempo todo, até quando estive machucado. Joguei 20 minutos pelo Vasco (em 2013, Guiñazu se machucou no clássico com o Botafogo, logo na estreia), depois também quando voltei. Não tenho mais como agradecer o carinho. O único jeito que posso devolver é lá dentro do gramado, que é onde posso dar alguma coisa para eles.
Se você parasse hoje, estaria satisfeito com o que fez na carreira?
(Com expressão de felicidade) Ah, eu estou feliz, muito orgulhoso com tudo que aconteceu. Mas não paro por aí, sempre quero um pouco mais: fazer mais amizades, conhecer mais gente, continuar ajudando muito mais, especialmente aos jovens, sei que ainda posso ajudar. Não sou louco, não sou bobo, se já não conseguisse, eu seria o primeiro a falar, mas vou buscar sempre um pouquinho a mais. Graças a Deus estou muito bem fisicamente e vou aprendendo muito com o passar dos anos a me posicionar, sair um pouco mais rápido, fazer mais simples, então acho que é tudo um conjunto. Estou bem para ajudar, e quero ainda um pouco mais.
O que mudou no Guiñazu de 20 anos e o de 36? Uma vez você disse que nunca consegue dosar a vontade, controlar o seu instinto.
Nada. A característica sempre foi a mesma que tento manter até hoje. Tudo que faço nos treinos tento passar para os guris. Claro que o guri, em 30 metros, faz 10 segundos. É normal, é da idade, porque eu já tive 20 anos. Mas eu tiro esses 30 metros no meu limite, sei que para atravessar um caminho, para o que for, esse meu limite vai me ajudar muito. Então não posso dosar nunca. Menos agora. Agora é onde eu tento apertar o máximo que tenho e tomara que isso sirva para ajudar o grupo.
Você foi o melhor no teste de resistência do Vasco…
(Interrompe) Não fala de melhor, porque tem um monte de animais aí (risos). Fico feliz porque isso me faz muito bem, mostra que todos podem, todos conseguem. Então, é botar na cabeça do jogo que consegue fazer várias coisas, não só no seu cantinho, como se fala, porque vai servir para o treinador, para o grupo, para ele. Porque eu aprendi e cresci muito como jogador quando consegui perceber que eu podia dar um pouco mais de mim. Então, cresce como jogador. E tudo isso eu falo que me sinto bem, a cabeça está muito bem, o que é fundamental.
Você nem descansa nas férias?
Eu paro uns dias, mas passam oito, nove dias, volto devagarzinho, faço 10 (km) porque não é fácil. Outro dia eu estava vendo o Real Madrid com um a menos contra o Espanyol, vi o jogo todo. É uma intensidade, é uma coisa, então, não posso, na minha idade, parar 30 dias. Mas sempre fui assim. Sempre, sempre. Me preparo, porque se for ver os trabalhos de agora é no limite, então eu sempre tento chegar um pouco mais forte para também não sentir aquela paulada no retorno do trabalho.
Qual dose de sacrifício que você precisa ter? Juninho, seu ex-companheiro, falou recentemente dos hábitos que tinha para se manter em alto nível.
É muito sacrifício, em tudo. Eu tive a sorte de conviver com Juninho, um profissional extra classe, fora de série. Foi o que foi, conseguiu a nível mundial o que conseguiu, de maneira brilhante, não só pelo talento, mas pelo que fazia. Tem que só tirar o chapéu, bater palma e copiar. Eu via como ele comia, como se cuidava e claro que tenho que copiar. E com 38, 39 anos, como corria. É uma coisa que você olha e dá alegria. Fui tentando copiar. Claro que como meus churrasquinhos, pizza, no devido momento. Às vezes, tomo uma cervejinha para acompanhar meu pai, com a esposa né, mas muito pouco, só para dar uma descontraída. Eu também gosto de refrigerante, é muito bom, mas evito muito. Tomo suco, água, mas vou aprendendo, tirando muitas coisas que te dão vida longa na carreira. Você não percebe, né, mas faz muita diferença.
Assisti uma entrevista sua ao site do Inter em que você comentava que quando chegou lhe chamavam de assassino pelo seu modo de jogar. Era imprensa, jogadores, que o tratavam assim?
Imprensa, jogadores… No meu início aqui no Brasil, tinha gente (que dizia que) parecia que eu matava os caras. Com o tempo, eles mesmos começaram a ver. Não só que eu não machucava ninguém, mas viam a estatística também. Você vê quantas bolas roubou, quantas faltas você faz, que tipo de falta, quantos você machuca, quantas vezes você passa a bola… Então, meu jeito meio agressivo para marcar confundia. Não dou pancada. Às vezes, chego de carrinho, meio de lado. Meus carrinhos são todos de lado, porque se dou carrinho de frente pode machucar. Se vou fazer carrinho é sempre de lado ou sigo em pé, firme. Ser agressivo para marcar não significa dar pancada. É chegar firme, empurrar, pegar, é de jogo, é normal. Se jogar contra você, não vou te deixar ganhar. Não vou te matar, mas não vou te deixar ganhar. Às vezes, uma falta tática e tudo. No início eu sofri (com o que falavam). Começava a falar: “não é isso. Você está enxergando de fora, não fala o que tu acha, enxerga o que acontece”. Se eu chego em um jogador, no Brasil acontecia muito isso, caíam 1,5m antes eu chegar. Eu não chegava a encostar no cara e era falta. Mas não mudei nunca. Não vou mudar nunca. Só que ficava feio isso. Falava para o juiz: “Ó, apita a falta que é falta, não apita porque eu estou chegando rápido para marcar”. Aí eles começaram a conhecer. Hoje tenho diálogo com todos, às vezes dou uma pressão normal, mas isso é futebol. Se tenho oito anos aqui e jamais machuquei ninguém, alguma coisa tenho de bom também. Fazer uma falta, isso, aquilo, sou volante, sou primeiro volante, jogo no limite, mas nunca com maldade, pelo amor de Deus. Eu gosto de jogar futebol. Tem gente que já me conhece, sabe que eu gosto de me aproximar, mas para dar pancada, não.
Você chegou a brigar com um médico do Internacional por que queria voltar a jogar mesmo depois de quebrar o braço. Como foi esse episódio?
Eu luxei o cotovelo contra a Universidad Católica, mas não sabia. Tinha arrebentado todos os ligamentos e aí eu queria entrar. Aí o médico falou com o treinador “troca, troca”. Eu disse: “troca p… nenhuma, tá louco?” Ele amarrou tudo e depois quando fizemos o exame estava tudo arrebentado.
Qual foi o maior choque cultural que sentiu na diferença do Brasil e Argentina?
Na Argentina, o jogador não se joga tanto assim. Isso nós sofremos, por isso estava acostumado a chegar mais perto, porque o jogador não cai assim por cair. Cai se você bateu. Mas acho que o jogador brasileiro já corrigiu muito isso. O Neymar hoje cai quando batem nele. No início, se tu perceber, ele caía quando não encostavam nele. E foi crescendo, crescendo e hoje é o monstro que é, merecido, e vai chegar a ser o melhor jogador do mundo.
Você jogou na Itália contra Ronaldo e Zidane. Ele está no mesmo nível?
Ele é demais, demais, está nesse nível. Lembro daquele gol (do Santos contra o Inter na Vila Belmiro, que concorreu ao mais bonito do ano pela Fifa) quando o Moledo começa a correr com ele, eu cheguei a gritar “derruba, derruba, derruba”, no bom sentindo, né, “puxa, puxa”, mas ele é muito inteligente, muito rápido. Se continuar desse jeito, não tenho dúvida, não sei se ano que vem ou outro, ele vai chegar a ser o melhor jogador do mundo.
Seu pai uma vez disse que você comia tijolo. Que história é essa?
(Risos) Eu era criança, né?! Como muitas vezes coloca a coisa no nariz… e uma vez tinha aquele tijolo vermelhinho, alguns que são mais duros, outros que quebram qualquer coisa. Aí eu…
E era bom?
Era bom demais (risos).
Você tem origem indígena. Sua criação com seus pais, vê isso tudo se refletindo na forma como você leva a vida, como treina e como joga?
Pode ser, pode ser, pode ser. Minha vó, a mãe da minha mãe e minha mãe são idênticas, elas são idênticas. Tem oitenta e poucos anos. É incrível, tem uma força de vontade incrível, uma coisa que tu vê que não pode parar em uma idade avançada. Minha mãe, que já tem 66, é incrível também, não pode parar um segundo. Acho que às vezes é por aí, é genética, sei lá.
O que seu pai fazia?
Meu pai está aposentado. Ele foi caminhoneiro, teve um bar. Só que, quando comecei a jogar bola, falei para eles descansarem. Eles vêm me visitar, ficam aqui, voltam para a Argentina.
Chegou a trabalhar com ele?
Viajei com ele quando era mais jovem, aí eu percebi que tinha que jogar bola (risos). É sério. Você pega calor, pega estrada, pega tudo, é brabo, é brabo.
Você que vive aqui há tanto tempo, como acompanhou as discussões dos 7 a 1 que a seleção brasileira sofreu da Alemanha?
Olha, eu senti também. São oito anos aqui, acostumo, porque gosto do futebol, da seleção brasileira, mesmo sendo argentino, a gente respeita muito, o Brasil é pentacampeão do mundo. Acho que foi um golpe duríssimo, duríssimo, que vai ficar para sempre. Todo jogo fica na história, esse vai ficar mais de tudo pela diferença do resultado, ainda mais sendo aqui. Mas acho que pode servir e muito para que pense que também não é tudo de bom, sempre melhor. Claro que são, tem os melhores jogadores, mas que também precisa ser… (faz gesto com as mãos expressando dureza) firme, dar duro, porque tem outros também que trabalham para c****, têm qualidade e tudo e estão muito bem armados. Tudo que é o contorno do futebol. Então é para dar parabéns para a Alemanha, não porque ganhou da Argentina, mas por que há quantos anos eles estão assim? Para mim, é a melhor seleção do mundo nos últimos seis, sete anos. Não importa se ganhou o Mundial ou não. Estou falando que se estruturou e está fazendo trabalho sensacional. Então acho que é para copiar, para ver que eles estão fazendo trabalho sensacional. Acho que foi golpe duro que vai servir, o Brasil é muito inteligente, tem cabeças muito inteligentes, então vai servir para se preparar sempre de um jeito diferente.
E a derrota da Argentina também foi duríssima…
Foi duríssimo. Estava vendo em casa. Argentina teve as melhoras chances para matar o jogo, mas futebol é isso. A Alemanha faz um gol incrível, um cruzamento entre dois lados de lá e o cara faz um golaço. Ou seja, tinha que ser campeão do mundo, mas a Argentina fez uma bela Copa. Chegou até a final, quando muitos não achavam. Foi lindo, cara, um Mundial diferente, muito bom, com muitas seleções, times que nunca apareciam, então acho que isso dá ao futebol uma energia, uma coisa que todo mundo pode, quase todo mundo está igual a todo mundo. Acho que isso dá uma energia que “vamos, que não tem ninguém que não pode”. Isso é muito bom.
Para finalizar, é difícil de imaginar, mas como era o Guiñazu meia-atacante?
Jogava muito esse moleque, cara. E dava carrinho também… Na hora que perdia a bola, dava carrinho (risos).
Globo Esporte