Dia de Portugal: historiador conta história que marca união entre Brasil e a ‘Terrinha’
Walmer Peres Santana, historiador do Vasco da Gama, contou uma história que mostra a união entre brasileiros e portugueses.
Quando voltar (Antonio dos Santos Malho refere-se ao retorno do português Alberto de Carvalho Silva, Presidente do Vasco, que abdicou do cargo para tratar de sua saúde em Portugal, grifo nosso), e Deus permitta que seja breve, cá nos encontrará sempre em torno da nossa bandeira Grancruzada com essa Cruz da Ordem de Christo, que serviu de estimulo aos navegadores portugueses, para a descoberta dos novos mundos; Cá nos encontrará sempre em torno d’essa Cruz Glorioza que é o Signal mais puro da Fé e que foi primeiro Symbolo que a audacia dos nossos antepassados conseguiu implantar na India ao mando d’esse Glorioso Capitão que se chamou Vasco da Gama, que é nosso Patrono e que é uma das puras e limpidas Glorias d’essa assombrosa Historia de Portugal!!! (Atas da Assembleia Geral do Club de Regatas Vasco da Gama (21/08/1898 a 18/10/1908), 20 de março de 1904).
No esporte do Brasil, nada é tão português e tão brasileiro quanto o Club de Regatas Vasco da Gama. Desde a sua fundação, o Clube tem sido uma associação na qual se juntam, se congregam, lusitanos e nacionais, à sombra de um mesmo ideal: o engrandecimento. Na contemporaneidade, o brasileiríssimo Vasco da Gama, como dizia Gilberto Freyre, é o maior elo entre o Brasil e Portugal no campo esportivo. No quadro geral das instituições luso-brasileiras, o Clube é um dos mais significativos representantes da relação de amizade entre os nativos dos dois países.
A dimensão da representatividade da agremiação vascaína pode ser medida em números. A população atual de Portugal é cerca de 10,3 milhões de habitantes. Por sua vez, o número aproximado de adeptos do Vasco da Gama é de 14 milhões. A “população de vascaínos” é superior a qualquer outro número de adeptos de algum clube português. São milhões e milhões de torcedores, de variadas nacionalidades, mas especialmente lusitanos e brasileiros, que se unem sob uma mesma bandeira, um mesmo clube, que nasceu no Brasil, mas tem uma essência, o nome e principal símbolo (a Cruz de Cristo, que carinhosamente chamamos de Cruz de Malta) relacionados à história de Portugal.
Naturalmente, o Clube fez crescer ao longo do tempo essa representatividade enquanto uma associação luso-brasileira, na esteira do seu sucesso esportivo, primeiro no remo e, depois, no futebol. Desde os momentos iniciais de sua organização, aqueles que seriam os Fundadores do Vasco da Gama pretendiam criar uma associação que fosse muito mais que uma simples agremiação esportiva voltada para o esporte náutico. O “Clube da Cruz de Cristo”, gerado a partir da união de brasileiros e portugueses, possuía no seu destino um encontro inevitável com a grandeza esportiva.
A partir do último quartel do Oitocentos, a urbe carioca passou por um vertiginoso processo de crescimento populacional, impulsionado tanto pela migração interna (pessoas de outras cidades e regiões que vinham para a capital do país na busca por melhores condições de vida) quanto pela imigração de estrangeiros para o solo nacional. Em 1872, a população do Rio de Janeiro era de 274.972 habitantes, pouco mais de duas décadas depois, no ano de 1890, havia saltado para 522.651. No ano de 1906, o Rio de Janeiro alcançou o patamar de 811.443 e disparou para 1.157.873 habitantes em 1920. Ao longo de todo esse período, verificou-se um aumento de quase 900 mil pessoas (mais de 400%) na população carioca.
A colônia portuguesa representava a maior parte do contingente de estrangeiros no Rio de Janeiro, sendo muito superior às demais de outras nacionalidades. Em 1890, dos 522.651 habitantes, a população de brasileiros era de 398.299 indivíduos (204.845 homens e 193.454 mulheres), dos quais 120.983 habitantes eram filhos de pai e mãe portugueses, 2.895 habitantes eram filhos de pai brasileiro e mãe portuguesa e 37.325 habitantes eram filhos de pai português e mãe brasileira. Dessa forma, a cidade possuía 267.664 habitantes da cidade com ascendência portuguesa, o equivalente ao espetacular percentual de 51,21% da urbe carioca.
O lusitano poderia compor os mangotes que abarrotavam as habitações populares (cortiços, hospedarias, estalagens, casas de cômodo, avenidas, zungas e pandemônios), ser o proprietário das habitações populares, o industrial, o operário, o dono de casa comercial, o caixeiro, o estivador, pertencer às camadas populares, às camadas médias ou às elites. Em suma, os portugueses estavam presentes em todas as camadas sociais e participavam das mais diversas atividades econômicas desenvolvidas na cidade do Rio de Janeiro. Entre 1890 e 1920, a metrópole carioca possuía mais lusitanos que quase todas as cidades de Portugal continental, ficando atrás apenas de Lisboa e Porto, respectivamente.
No Rio de Janeiro, os portugueses, na sua maioria jovens vindos do Norte português, especialmente do Minho, Douro e Trás-os-Montes (provenientes de cidades como Viana do Castelo, Braga e Vila Real, ou camponeses pobres de Vila Nova de Foz Côa ou Moimenta da Beira), desempenhavam variadas atividades. Entretanto, destacava-se, sobretudo, a presença dos lusos no comércio e no transporte da urbe carioca. O setor comercial é particularmente importante para o Club de Regatas Vasco da Gama, haja vista que grande parte de seus fundadores, dirigentes e sócios (nas primeiras décadas de sua existência) atuavam no comércio, como patrões ou empregados.
O objetivo do imigrante lusitano nas terras brasileiras, a grosso modo, era trabalhar para que pudesse fazer suas economias, ao mesmo tempo, enviar dividendos para ajudar os seus familiares que ficaram na sua terra natal, e guardava consigo o sonho de retornar como “Brasileiro” (eram assim chamados em sua terra natal os portugueses que retornavam enriquecidos para Portugal, após a emigração para o Brasil), ostentando riqueza na sua “terrinha”, realidade essa que, na maioria dos casos, não se concretizava.
Uma das facetas da colônia portuguesa no Rio de Janeiro, que também pode ser observada em outros locais de concentração lusitana, foi a criação de associações dos mais variados matizes. A instalação de agremiações pode ser compreendida como uma estratégia de afirmação e conformação da colônia lusitana. Esse processo atendia tanto à necessidade de auto-organização (para melhor encarar os problemas e desafios encontrados no Brasil e para celebrar a relação com a pátria distante) quanto ao desejo de demonstrar à sociedade brasileira o valor da colônia lusitana, e sendo também uma forma de intervenção política.
Dentre tantas associações criadas por portugueses no Rio de Janeiro, podemos citar o Gabinete Português de Leitura (1837), a Sociedade Portuguesa de Beneficência (1840), a Caixa de Socorros D. Pedro V (1863) e o Liceu Literário Português (1868). No esporte, a partir da segunda metade do Oitocentos vimos surgir agremiações a partir dos anseios dos lusitanos. Em 1868 foi criado o Clube Ginástico Português e no ano de 1874, surgiu o Congresso Ginástico Português. Ambas as associações tinham a ginástica como prática esportiva principal.
No final do século XX, a “febre do remo” foi tomando a cidade, como dizia o português José Lopes de Freitas, um dos fundadores do Clube. Lusitanos e portugueses, empregados e patrões, no comércio carioca, resolveram criar um clube de remo. O nome da nova associação fez homenagem ao navegador lusitano Vasco da Gama, herói de Portugal, da mundialização, da expansão marítima, que desbravou os mares descobrindo uma rota comercial para a Índia (1897-1899). A escolha não foi um acaso, os “vascaínos” mais envolvidos com o ato fundacional buscavam atrair a colônia portuguesa que residia no Rio de Janeiro, na esteira das comemorações do IV Centenário do feito português. A cruz, a nossa “cruz de malta”, foi o primeiro símbolo, o primeiro escudo do Clube. A cruz vascaína, toda encarnada, é uma representação, bastante divulgada nos finais do século XIX, da cruz da Ordem Militar de Cristo, que estava à frente das Grandes Navegações lusitanas do século XV e XVI.
O Rio de Janeiro, no final do século XIX e início do XX, era a cidade com maior presença de portugueses no Brasil, e com vários elementos muito prósperos economicamente, vinculados aos mais diversos setores da economia, com grande destaque ao comércio. No entanto, uma das marcas desse período era a imagem pública do imigrante português associada à decadência e ao atraso civilizacional. Dessa forma, a constituição de um clube de remo – o mais popular dos esportes de então (profundamente conectado com as dimensões da modernidade que se espraiava pela metrópole carioca) – decorrente do movimento voluntário de negociantes e empregados do comércio do Rio de Janeiro, majoritariamente portugueses, representou o propósito de reordenar a imagem pública ou simbólica da comunidade lusitana na cidade.
A intenção dos Fundadores era obter a grandeza esportiva, com isso, fazer do Vasco cada vez mais um símbolo da colônia, um símbolo do valor do povo português, mas também um símbolo da congregação entre lusitanos e nacionais. A chave utilizada pelos dirigentes vascaínos para obter o sucesso esportivo foi a assimilação. A agremiação, cujo surgimento foi marcado pela congregação de lusitanos e brasileiros, tomou a assimilação como o principal instrumento para alcançar a grandeza esportiva e, com isso, obter capilaridade na sociedade.
Nos seus primeiros anos de vida, o Clube enfrentou crises e cisões. Superadas as grandes tormentas, quando o Vasco deu sinais aos demais clubes náuticos do seu potencial, não tardaram a tentarem enfraquecê-lo. A partir de 1904, agremiações coirmãs, através da Federação de remo, buscaram perseguir os atletas do Vasco, a sua maioria portugueses e brasileiros que trabalhavam como atendentes no comércio carioca.
No entanto, o luso-brasileiríssimo Vasco da Gama não abandonou os seus atletas e brigou para que esses pudessem ter o direito de praticar o remo, defendendo a bandeira cruzmaltina. O antilusitanismo e o preconceito social foram enfrentados graças aos brios dos vascaínos, inspirados na gloriosa história de Portugal, marcada pelo ineditismo. Poucos sabem que dos 18 atletas que deram os dois primeiros títulos no remo para o Vasco da Gama (1905-1906), 11 eram portugueses. Por muitos anos os lusitanos foram responsáveis pelas grandes conquistas do remo vascaíno.
Os anos se passaram, os dirigentes decidiram colocar o Clube na rota do futebol, esporte que havia suplantado o remo em popularidade. Postura essa que teve a atuação fundamental do lusitano Raul da Silva Campos, que lutou para inserir o ludopédio no Clube. Se no início a equipe vascaína era majoritariamente lusitana (vale lembrar que o português Adão Antonio Brandão foi quem marcou o primeiro gol da história do Vasco no futebol), não tardou para que os brasileiros passassem a ter destaque. Eram os “Nelson”, os “Bolão”, os “Paschoal”, os “Negrito”, os “Cecy”…
Novamente, a política de assimilação vascaína incomodou os rivais. A agremiação foi acusada de servir, no esporte, aos anseios de lusitanos que queriam colocar o Brasil sob o julgo de Portugal. Quanto mais vencia, mais era acusado, ofendido, achincalhado. A nau luso-brasileiríssima do Vasco seguiu. Com os Camisas Negras, o mais brasileiro dos clubes cariocas, fez com que pela primeira vez fossem vitoriosos, na capital do Brasil, jogadores das camadas populares, negros e brancos de baixa condição social.
Diante da ameaça de exclusão dos nossos atletas, respondeu o Vasco com uma “Resposta Histórica”. A AMEA replicou dizendo que gostaria que a agremiação vascaína tivesse equipes “genuinamente portuguesas”. O luso-brasileiríssimo Vasco da Gama, diante da sua postura, demonstrou que a casa vascaína não era para alguns, mas para todos. Quiseram colocar o Clube como um pária, um “estrangeiro invasor”. Logo o Vasco, o mais brasileiro dos clubes de futebol do Rio de Janeiro.
Quando, mesmo que engasgados com uma boa espinha de bacalhau (representada pela fortuna gerada pela imensa torcida vascaína que lotava os estádios), os clubes coirmãos convidaram novamente o Vasco para a festa, a ofensa vinha por não termos um estádio. Um estádio. Jamais seríamos reconhecidos como um dos grandes sem um estádio. Pois bem, lá foi a colônia lusitana e os brasileiros se unirem para construir o estádio: o maior da América do Sul. São Januário, o nosso “Gigante de Concreto”, é um símbolo da luta vascaína contra o antilusitanismo, o racismo e o preconceito social. E o que é o Vasco? O traço de união entre Brasil e Portugal.
Historicamente, o Vasco da Gama possui uma relação de amizade e proximidade com os clubes coirmãos de Portugal. O diálogo e a boa receptividade, de ambos os lados, que se estabeleceram durante décadas entre os dirigentes vascaínos e os administradores dos clubes portugueses vão muito além de uma única partida de futebol. Unidos pelos sentimentos de amor e respeito pela pátria portuguesa, vascaínos (dirigentes, sócios e torcedores) e os adeptos dos clubes portugueses mantiveram ao longo dos anos a cordialidade fraternal, que reforçou a condição do Vasco da Gama como o traço mais forte de união entre Brasil e Portugal no âmbito esportivo. Além disso, o Clube já recebeu artistas e diversas autoridades lusitanas, inclusive, presidentes da República Portuguesa. Deve-se destacar que o Vasco teve o título de “Real” ratificado pela Coroa Portuguesa, em 2017.
A primeira partida de futebol contra os lusitanos foi realizada em 22 de julho de 1928. O encontro entre a agremiação vascaína e o Sporting, ocorrido no Estádio de São Januário, terminou empatado em 1 a 1. Esse foi o primeiro confronto do Vasco da Gama com uma agremiação de outro continente. No geral, o Gigante da Colina enfrentou equipes portuguesas em 59 oportunidades: venceu 29 partidas, empatou 11 e perdeu 19. O Vasco marcou 124 gols e sofreu outros 83, somando 41 gols a seu favor.
A agremiação vascaína jogou 56 partidas com clubes portugueses e 3 com combinados locais. Nos embates com os clubes lusitanos, o Vasco da Gama possui 26 vitórias, 11 empates e 19 derrotas, marcou 107 gols e sofreu 76. Isso resulta em um saldo de 31 gols a favor do “Clube de São Januário”. Nas disputas contra combinados, o Vasco venceu as três partidas que disputou, fez 17 gols e sofreu 7, mantendo um saldo positivo de 10 gols.
Mais do que números de futebol, neste 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, que faz referência à data de falecimento do poeta lusitano Luís Vaz de Camões (10/06/1580), autor do grande poema épico Os Lusíadas, devemos destacar a importância dos portugueses para o Vasco da Gama. De Portugal vieram a maior parte dos Fundadores do Clube, durante décadas os lusitanos constituíram as diretorias, os conselhos, e foram majoritários no quadro associativo. Graças a influência da cultura ibérica-portuguesa, a agremiação vascaína tornou-se um clube diferenciado no campo esportivo carioca.
Inspirados nesse dia tão simbólico para os portugueses e todos aqueles que possuem alguma relação afetiva com a cultura portuguesa, precisamos relembrar as raízes lusitanas da agremiação vascaína, elemento precípuo para a fundação e a consolidação do Clube no campo esportivo. Além disso, destacar o protagonismo da agremiação vascaína enquanto uma associação luso-brasileira no esporte nacional e a existência da relação fraternal entre o Vasco e as agremiações coirmãs da pátria portuguesa. Acima de tudo, precisamos ratificar que o nosso Vasco, tal como uma legítima casa portuguesa, está de portas para receber.
Fonte: Site Oficial do Vasco