Antigo jornal gay Lampião da Esquina usou o Vasco para burlar a Ditadura; entenda

Em janeiro de 1981, camisas do Vasco da Gama foram usadas por personagens na capa de uma das edições do jornal.

Capa do jornal Lampião da Esquina em referência ao Vasco
Capa do jornal Lampião da Esquina em referência ao Vasco

”Brasil campeão mundial de travestis” e uma foto de um time com a camisa do Vasco: essa foi a manchete do Lampião da Esquina em janeiro de 1981. Mas como o uniforme do Cruz-Maltino acabou vestindo as personagens da capa de uma das edições do que ficou conhecido como ”primeiro jornal gay do Brasil”? Ao que tudo indica, o país estar em meio ao período da Ditadura Militar, uma pitada do acaso e um conselheiro que também patrocinou a base do clube são fatores que ajudam a explicar.

O Lampião da Esquina foi lançado em 1978 e integrou o que foi chamado de ”imprensa alternativa”. Em suas páginas eram tratados não apenas assuntos relacionados à sexualidade, mas também questões de identidade e sociais, em um contraponto aos jornais tradicionais. Além disso, também havia política, meio ambiente, dentre outros pontos. A circulação aconteceu até 1981.

Na edição 32 da publicação, datada de janeiro de 1981, o subtítulo foi ”cinco páginas sobre as bichas biônicas, e mais uma entrevista com Rogéria, o Zico desta seleção”. Na página 3, um texto homônimo à manchete foi assinado pelo poeta e crítico de arte Francisco Bittencourt, integrante do corpo editorial do Lampião. A entrevista com Rogéria foi conduzida por Aguinaldo Silva, Alceste Pinheiro, Antonio Carlos Moreira, Dolores Rodrigues e Cynthia Sarti.

O UOL Esporte procurou alguns destes jornalistas para saber o motivo de a camisa do clube ter sido utilizada. Após o contato, Aguinaldo Silva, um dos mais importantes autores de novelas do país, fez uma publicação em sua página no Facebook e indicou que a intenção inicial era que a equipe retratada na capa estivesse com a camisa do Brasil.

”Lembrei que a ideia original de João Paulo Pinheiro, o produtor da foto, era vestir as modelos com camisas da seleção brasileira. Mas, atenção: estávamos em plena Ditadura. A seleção brasileira era considerada pelos militares que então mandavam um símbolo da nação. E, vestir travestis com camisas da seleção ‘canarinho’ podia nos render mais um processo – já enfrentávamos dois pela Lei de Imprensa – pois o então Ministro da Justiça, Armando Falcão, já deixara claro que não nos daria tréguas. Assim, ao que me recorde alguém sugeriu: ‘vamos usar a camisa de um time!”’, publicou.

Em um pequeno box na página 7 daquela edição, há a seguinte mensagem sobre a capa: ”As camisas do Vasco e a bola foram uma gentileza da Rey das Calças – Moda Jovem Unissex (Copacabana, Ipanema. Leblon e no Rio-Sul Shopping Center). O palco é do Teatro Alaska, e a produção foi de João Paulo Pinheiro. Foto: Ricardo Tupper”.

O ”escrete de ouro dos travestis”, como batizou o jornal, era formado por: Sandra Mara, Kiriaki, Marlene Casanova, Verushka Ângela Leclery, Jane, Cláudia Celeste, Elaine, La Miranda, Fujica e Monique Lamarque.

O local onde as imagens foram feitas era próximo ao, na ocasião, Rey das Calças, hoje Rey & Co, em Copacabana. A loja é de Faues Cherene Jassus, o Mussa, conselheiro do Cruz-Maltino desde 1979. No início da década de 80, inclusive, a Rey das Calças foi patrocinadora da base do clube.

Mussa, até hoje ativo na vida política de São Januário e ”pai das diretas” na eleição da Colina, admitiu não se recordar especificamente da demanda do Lampião da Esquina, mas, com bom humor, salienta que, à época, distribuía camisas do clube de coração.

”Eu montei a Rey das Calças em 64, na Rua da Alfândega. Em 81 [ano da edição], eu tinha diversas lojas, e algumas também de material esportivo. Os chefes de torcida procuravam vascaínos para ajudar nas festas, viagens, sorteio de material, e eu dava. Andava com o carro cheio de camisas do Vasco (risos). No Aterro do Flamengo, tinha muito time que ia jogar de Vasco porque eu tinha dado o uniforme. Sobre o pedido do jornal, não me recordo exatamente, mas a loja era minha mesmo”, contou ao UOL Esporte.

”Eu sou de Campos e, no início da década de 80, eu patrocinava o Americano e o Goytacaz. Eu estava na chapa com o [ex-presidente Antônio Soares] Calçada e vencemos a eleição [de 82]. O Vasco estava em situação difícil e ele pediu para eu ajudar, mas eu não tinha recursos para o time profissional. Passei a patrocinar a base, e, como vice-presidente, consegui o patrocínio da Bandeirante Seguros para a equipe principal”, completou.

Aquela capa acabou se tornando uma das poucas referências explícitas a um time e ao futebol. Recentemente, a peça fez parte de algumas exposições, como a ”Crônicas cariocas”, que esteve no Museu de Arte do Rio. O perfil oficial do MASP, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, também já publicou a capa em redes sociais.

Homenagem

Uma das integrantes do time da capa daquela edição do Lampião da Esquina foi Cláudia Celeste, a primeira em pé à esquerda. Na última segunda-feira (22), o Doodle (ilustração no topo do buscador Google) enalteceu sua figura, visto que ela se tornou a primeira travesti a atuar como atriz em novelas no Brasil. A carioca fez história ao participar de ”Espelho Mágico”, exibida pela Globo em 1977, e como personagem fixa de “Olho por Olho”, da Rede Manchete, em 1988.

Cláudia foi cantora, dançarina, produtora e autora, e lutou pelos direitos dos artistas transgêneros e LGBTQIA+. O Tilt, do UOL, recordou um pouco da trajetória dela no dia da homenagem feita pelo buscador.

Cobertura combativa

À época, a homossexualidade no esporte e no futebol eram pautas ainda mais tabus que nos dias de hoje. E o assunto foi tratado no Lampião da Esquina, sob uma cobertura incisiva na denúncia a este aspecto. Como exemplo, na edição de julho/agosto de 1978, duas notas foram batizadas com ”noticiário esportivo (1)” e ”noticiário esportivo (2)”.

A primeira tratava de um filme que era exibido nos Estados Unidos e contava a história de um técnico de atletismo e um atleta que se preparavam para a Olimpíada, e eram homossexuais vivendo juntos, ”o que provoca escândalo no país e no exterior”. Ainda no texto, havia uma dura crítica a José Inácio Werneck, cronista esportivo que, após a derrota do Brasil na Copa, escreveu que era ”preciso nos clubes reformular as escolinhas de futebol que, atualmente, estão entregues a incompetentes e, pior, incompetentes homossexuais”.

A segunda nota contava a história da ”Coligay”, uma torcida organizada do Grêmio que existiu entre 1977 a 1983 e era formada por homossexuais. Mas com uma crítica: ”Os componentes do grupo, ao unirem-se pela identidade dos gestos afetados, dos requebros e do agressivo exibicionismo, representam exatamente o papel que a eles atribuem os machões”. Depois, citam que ”se acham prontos a servir de palhaço a machistas”.

Na edição experimental do jornal, em abril de 1978, em resposta a carta de um leitor, que citava uma entrevista de Orlando Fantoni, então técnico do Vasco, à ”Última Hora” de São Paulo, que falava sobre o ”homossexualismo no futebol”, o Lampião prometeu: ”aguarde o número de junho do nosso jornal, em homenagem à Copa do Mundo. Depois dele, o futebol nunca mais será o mesmo”.

Porém, a matéria não chegou a ser publicada. Em nota, intitulada: ”O futebol é sempre o mesmo”, explicou-se que ”a matéria, ainda na fase de apuração, revelou-se muito forte E depois quando tratamos de redigi-la, ficou bem claro que não poderíamos publicá-la sem entrar num clima de ‘entregação’ que não é o nosso. Assim, ficam os leitores frustrados, mas nós mantemos a nossa promessa inicial: respeitar os direitos de quem quiser continuar enrustido”.

”[O machismo] Não chegou a influenciar a pauta de forma absoluta. O assunto [futebol] foi tocado em várias situações, como quando da tentativa do Clóvis Bornay em formar a Flagay. Nessa ocasião, o João Antônio Mascarenhas, já falecido, publicou um artigo no jornal, no qual criticava o Márcio Braga severamente e lhe esfregava na cara que havia sido nadador do clube, em muitas competições oficiais, quando era jovem”, Alceste Pinheiro, que integrou a equipe do Lampião da Esquina, ao UOL Esporte.

O Lampião da Esquina

Em uma época de repressão e conservadorismo, o Lampião da Esquina trazia à tona temas desafiadores, questões políticas e com manchetes que impactavam. Em junho de 2020, o Ecoa UOL contou um pouco da história do que ficou conhecido como o ”primeiro jornal gay do Brasil”.

O Conselho Editorial do jornal era formado pelos jornalistas Aguinaldo Silva (também dramaturgo), Adão Costa, Antonio Chrysóstomo, Gasparino Damata e João Antônio Mascarenhas, pelo artista plástico Darcy Penteado, pelo poeta e crítico de arte Francisco Bittencourt, pelo cineasta e escritor João Silvério Trevisan, pelo antropólogo Peter Fry e pelo crítico de cinema Jean Claude Bernardet.

”O jornal, inicialmente, estava mais preocupado em retirar o ‘gay’ da margem social, abrindo o discurso às minorias. Já em sua fase final, se adapta ao gueto e torna-se mais ousado, contendo até mesmo ensaios sensuais e abordando temas mais polêmicos do que fazia em sua fase inicial”, diz trecho do site do Grupo Dignidade.

Em 2016, foi lançado o documentário ”Lampião da Esquina”, com produção de Doctela, coprodução do Canal Brasil e direção de Lívia Perez.

Ações e preconceito

Nos últimos anos, diversos clubes, e a própria CBF, têm feito ações de conscientização contra a homofobia, mas o assunto ainda esbarra certas barreiras e, muitas vezes, não encontra o eco necessário para surtir efeito.

Postagens em redes sociais, partes do uniforme e do estádio com as cores da bandeira LGBTQIA+ e até parceria com ONG’s foram algumas das práticas vistas no futebol brasileiro nos últimos anos, principalmente em datas simbólicas, como no Dia Mundial do Orgulho LGBTQIA+, celebrado no dia 28 de junho.

Ao mesmo tempo, o número 24, por exemplo, ainda é visto com preconceito até mesmo na seleção brasileira. O time Canarinho que participou da Copa América de 2021, disputada no Brasil, foi o único a não ter um jogador com o 24 – número que no Jogo do Bicho representa o veado – às costas. A numeração pulava do 23 do goleiro Ederson para o 25 do volante Douglas Luiz. Procurada à época, a CBF não quis explicar o motivo dessa decisão.

Camisa daquela capa de 81, o Vasco, agora institucionalmente, chamou a atenção em recentes movimentos neste sentido. No ano passado, lançou uma camisa com a faixa diagonal tendo as cores da bandeira LGBTQIA+. O jogo contra o Brusque, pela Série B do Brasileiro, ficou marcado pela comemoração do atacante Germán Cano, que levantou a bandeira de escanteio, que também fazia referência ao movimento.

Em junho deste ano, representantes de organizadas do clube assinaram um Código de Conduta Ética, elaborado pelos departamentos de Integridade e Jurídico, onde se comprometem a adotar práticas de transparência e de combate à violência, assédio e discriminação nos estádios.

Fonte: Uol

1 comentário
  • Responder

    Vão lacrar em outro clube e larguem o CRVG de uma vez por todas, queremos um Vasco gigante e conquistando títulos, esse negócio de homofobia já tá ficando chato, cada um que seja o que quiser porque opção sexual é coisa íntima e cada um decide sua vida.

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