Vasco e filha tentam preservar legado de Barbosa
Vasco da Gama e Tereza Borba, filha de Barbosa, tentam preservar o legado do ex-goleiro, que faria 100 anos neste sábado.
O telefone toca, e Tereza Borba, filha de consideração de Barbosa, atende. Naquele momento ela procurava fotos do pai a pedido de um veículo de imprensa. Até a última quinta-feira, já havia atendido inúmeros jornalistas e atenderia outros mais. Porém, nenhum esforço que incomodasse.
A cada resposta, o riso fácil não escondia a satisfação de poder falar sobre conquistas do ex-goleiro, com quem conviveu na cidade de Praia Grande em sua última etapa de vida. Se vivo fosse, Moacyr Barbosa faria 100 anos neste sábado. E, neste centenário, ainda que de forma tardia, se desenha um merecido reconhecimento a um dos grandes goleiros da história do futebol brasileiro. Possivelmente o maior deles antes da ‘era Pelé’.
Tereza abraçou a missão: desconstruir uma imagem que por anos foi repetida. Gerações de brasileiros cresceram ouvindo sobre o Maracanazo e um goleiro responsabilizado por perder uma Copa dentro de casa para o Uruguai. Barbosa, que fez história no Vasco, faleceu em 2000. Mais de duas décadas depois, a “Neguinha”, como era carinhosamente chamada por ele, ainda batalha para que seu legado não fique perdido por trás de um único episódio.
“Desde que Barbosa estava vivo eu falava: ‘vou tirar esse estigma de 50’. E ele falava: ‘ah, você não consegue, Neguinha’. Minha luta é diária pela memória do Barbosa. E 50 também foi muito bonito. Chegar onde o Brasil chegou é para ter orgulho, não vergonha. Ele tinha orgulho. O mundo e o Brasil devem desculpas ao Barbosa”. Tereza Borba, filha de consideração de Barbosa.
“A única cruz que ele carregou foi a cruz de malta”
O mundo associa Barbosa quase que de imediato a 16 de julho de 1950. Nesta data, diante de um público inédito na história do futebol, estimado em quase 200 mil torcedores no Maracanã, o Brasil deixou escapar seu primeiro título mundial na partida decisiva da Copa, diante do Uruguai.
Precisando de apenas um empate para ser campeão, o time anfitrião foi batido de virada. No gol que selou o bicampeonato uruguaio, o atacante Alcides Ghiggia achou uma pequena brecha entre a trave e Barbosa. Foi o bastante para, a partir dali, se construir a imagem cruel de “vilão de 50”, que acompanharia o goleiro por mais 50 anos, até sua morte, em 2000.
Mas até que ponto essa ideia de “martírio vivo” é real? Barbosa até desenvolveu um repertório próprio de bordões para lidar com o tema, sempre que era requisitado pela imprensa a falar daquele jogo. Mas a imagem do ex-goleiro para quem conviveu com ele era a de um homem gentil, discreto e com sorriso quase permanente.
“O Barbosa nunca carregou aquela cruz de se sentir culpado. A culpa era dos outros. Quem fez essa maldade com o Barbosa foi o povo e a imprensa. Barbosa era livre. Você pega as fotos e ele está sempre sorrindo, sempre contente. A única cruz que o Barbosa carregou foi a de malta [símbolo ligado ao Vasco da Gama]. Quando ele falou sobre a pena máxima no Brasil [30 anos] ele não quis dizer que estava pagando, quis dizer que o povo o condenava há quase 50 anos. Ele nunca se condenou e tinha a cabeça fresca porque sabia o que tinha feito”, rebate Tereza, a filha de consideração que o acompanhou no fim da vida.
Recorde de títulos na história do Vasco
Moacyr Barbosa é o atleta que soma mais títulos na história do futebol do clube, feito que muito dificilmente será ultrapassado nos tempos atuais. Ao todo, o arqueiro ostenta 14 troféus, entre competições oficiais e não oficiais.
Entre as principais conquistas estão o Sul-Americano de 1948 — reconhecido posteriormente pela Fifa como o primeiro título sul-americano de clubes – e o Torneio Octogonal Rivadavia Corrêa Meyer, em 1953, que foi uma continuação da Copa Rio e que o Vasco tenta buscar o reconhecimento como título mundial.
Considerando somente os títulos oficiais, Felipe “Maestro”, ídolos dos anos 90 e 2000, é o recordista, com sete conquistas.
Outra marca importante de Barbosa pelo clube é que ele é o quinto com mais partidas disputadas, somando 485 e ficando atrás somente de Alcir Portela (511), Sabará (576), Carlos Germano (632) e Roberto Dinamite (1.110).
Torcida quer homenagem no CT
Desde o ano passado, quando o centro de treinamento na Cidade de Deus ainda estava sendo construído, a maioria da torcida do Vasco se mobilizou para que o local fosse batizado com o nome de Barbosa. Apesar da campanha, o então presidente do clube, Alexandre Campello, decidiu por nomeá-lo como “CT do Almirante”.
O dirigente, no entanto, minimizou a situação convidando a filha do ex-goleiro para o lançamento da propriedade e batizou o campo principal com o nome do ídolo.
Posteriormente, em outubro de 2020, a via que dá acesso ao CT vascaíno também foi renomeada como “Avenida Moacyr Barbosa”. As homenagens, porém, não devem parar por aí. A nova gestão, comandada por Jorge Salgado, pretende rebatizar o local em um concurso popular, em que Barbosa tem seu nome como favorito.
Ajuda de Eurico na aposentadoria
Apesar da sólida carreira e dos títulos conquistados, Barbosa não fez fortuna com o futebol. Após pendurar as luvas, o então ex-goleiro se tornou funcionário da Suderj — órgão do Estado do Rio responsável pela administração de complexos esportivos — e trabalhou como instrutor de natação para jovens e adultos nas piscinas do Maracanã.
Já aposentado, foi viver em Praia Grande, litoral de São Paulo, quando ganhava mensalmente algo em torno de R$ 130, como revelou em uma entrevista ao Esporte Espetacular em 1999. À época, Tereza procurava um novo lar para Barbosa, que teria alguns dias para sair de onde morava, e recorreu a Eurico Miranda. O dirigente, que pouco depois se tornaria presidente, respondeu prontamente.
“Ele tinha uns dez dias para sair de onde estava morando e estávamos correndo atrás. O Eurico ligou aqui para casa para chamar para um evento que aconteceria em São Januário, para os campeões de 48 [Sul-Americano]. No dia seguinte ao evento, estava tendo uma reunião em São Januário com ex-jogadores e alguns vascaínos ilustres. Eu expliquei ao Eurico a situação e ele disse: ‘Tereza, deixa comigo. Não é dinheiro do Vasco, não’. Ele começou a dar uma ajuda mensal”.
A relação de Eurico Miranda com Barbosa, e outros integrantes do “Expresso da Vitória”, era antiga.
“No final dos anos 90, o Eurico o ajuda. Não o Vasco, o Eurico consegue que ele tenha uma renda mensal. O Eurico teve, no período em que entrou na política do Vasco, um grande expoente do clube que ele buscou seguir, que foi o Cyro Aranha, que foi justamente quem montou o “Expresso da Vitória”. Quando ele começa a entrar no meio político do Vasco, tem o apoio dos atletas do Expresso nas campanhas eleitorais e, ao longo do tempo, foi uma relação de muito carinho”, conta Sérgio Frias, autor do livro “Eurico Miranda – Todos contra ele”. “E o Barbosa era um dos que ele tinha um grande carinho, por entender que foi um dos grandes goleiros da história do Vasco e foi muito injustiçado”.
Seleção não foi só o Maracanazo de 50
A passagem de Barbosa pela seleção brasileira não se resume apenas à Copa de 1950. O jogador nascido em Campinas também ajudou a rechear a lista de títulos do “país do futebol” com a Copa Roca de 1945, a Copa América de 1949 e as edições de 1947 e 1950 da Copa Rio Branco.
Barbosa terá o centenário lembrado em uma exposição no Museu do Futebol, em São Paulo, prevista para acontecer ainda no primeiro semestre deste ano. Além disso, São Januário, também deve receber uma mostra sobre o “Goleiro Magistral”.
Uma história que tangencia a carreira de Barbosa na seleção e ganhou grande repercussão aconteceu em 1993. O Brasil se preparava, na Granja Comary, em Teresópolis, para a partida contra o Uruguai, que valia a classificação para o Mundial do ano seguinte. A rede britânica BBC quis promover um encontro entre Barbosa e Tafarell, à época goleiro titular, o que não foi concretizado.
Na ocasião, veículos de comunicação divulgaram que o técnico Parreira havia proibido o ex-vascaíno de se encontrar com a delegação, versão negada pela filha Tereza.
“O Barbosa foi fazer uma matéria para BBC, de Londres, e ficou uma semana na Granja Comary, juntamente ao Parreira, Zagallo, Tafarell e jogadores. Sem problema algum. O Zagallo é apaixonado pelo Barbosa. Até dizia que, se fosse montar uma seleção para ele, o Barbosa seria o goleiro”, conta.
“Apareceu um jornalista e falou que gostaria de fazer uma foto dele [Barbosa] com o Tafarell. O Barbosa, super educado, topou, mas o Zagallo, como protetor, o chamou de canto e falou: ‘Barbosa, se eu fosse você, não faria essa foto. Se der uma zebra e o Brasil perder, vão colocar nas suas costas, dizer que você deu falta de sorte. Eles não vão ter o que escrever e vão colocar seu nome na lama de novo. Mas, estou só te falando como amigo’. Barbosa parou e pensou bem. Então, ele chegou no jornalista e falou: ‘vamos deixar para uma outra hora’. O jornalista ficou furioso, e o cara disse que Barbosa foi barrado”, completou.
Clubes de Barbosa na carreira
Ypiranga (SP)
1942 a 1944
Vasco da Gama
1945 a 1955 (1ª passagem)
Bonsucesso
1957 (emprestado)
Santa Cruz (PE)
1955 a 1956
Vasco da Gama
1958 a 1962 (2ª passagem)
Campo Grande (RJ)
1962
Legado aos goleiros negros
“Não tenho confiança em goleiro negro. O último foi Barbosa, de triste memória na seleção”. A frase polêmica de Chico Anysio em um texto publicado no jornal Lance!, em 2006, dá uma amostra do sentimento pejorativo que acompanhava os negros da posição desde a Copa de 1950. A coluna foi motivada pelo Mundial daquele ano, quando o Brasil teria Dida sob as traves.
Após Barbosa, um negro voltou ao gol do Brasil em um Copa apenas em 1966, quando Manga, reserva de Gilmar, atuou contra Portugal, jogo que acabou sendo o último da seleção naquele Mundial.
“Falar de Barbosa é importante demais porque justamente o colocaram como símbolo de um fracasso, perpetuaram essa velha frase de que ‘goleiro negro dá azar’, ou aquela que diz que ‘é melhor uma pessoa de cor não jogar no gol para evitar sofrimento’. Isso acontece por essa suposta falha do Barbosa. Jogaram uma derrota nas costas dele. Quem perdeu foi toda uma seleção”, disse Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
“Essa suposta falha nos traz também àquela máxima de que o jogador negro pode fazer sucesso, mas na primeira falha, a sociedade desumaniza.”
No Vasco, clube que Barbosa teve enorme identificação e foi multicampeão, Acácio foi o goleiro na vitoriosa campanha do Brasileiro de 1989. Agora na temporada de 2021, a equipe cruzmaltina tem outro negro no gol: Lucão, que é cria da base (na foto acima).
“Ele nos deu um sopro de esperança. Nos tempos de hoje, temos muitos goleiros negros que são importantes, mas antes do Barbosa não era assim. Dá para ver o legado que ele nos deixou”. Lucão, goleiro do Vasco.